Os tribunais e a gestão algorítmica do trabalho
A introdução da gestão algorítmica do trabalho por diversas empresas trouxe consigo uma série de desafios aos trabalhadores e às autoridades públicas em todo o mundo.
Em especial, a questão da classificação correta dos trabalhadores – sobretudo das plataformas digitais mais emblemáticas de transporte particular ou de entrega de alimentos – demandou de tribunais de vários países análises e decisões diversas sobre a gestão algorítmica do trabalho implementada por muitas plataformas.
Frente a tais desafios, uma primeira e fundamental questão colocada diz respeito ao modo como as plataformas digitais designam contratualmente as relações que estabelecem com seus trabalhadores. Tribunais em todo o mundo, ainda que não desconsiderem totalmente o que está estipulado em contratos redigidos pelas plataformas – predominantemente de modo unilateral – concentram-se nas relações fáticas estabelecidas entre as partes para decidir sobre a classificação dos trabalhadores.
De saída, isso implica o enfrentamento de um problema específico colocado por diversas plataformas digitais: a opacidade da gestão algorítmica. Isso é, as resistências de muitas empresas em disponibilizar informações sobre o funcionamento interno de seus sistemas.
Sobre isso, um ponto chave, reconhecido por diversos tribunais, é a centralidade que as próprias plataformas digitais têm para o modelo de negócio de muitas dessas empresas. Isso é, como para estas últimas, o principal meio de produção da atividade desenvolvida é a própria plataforma, que organiza os diversos aspectos da prestação de um serviço. Carros, motocicletas ou bicicletas, por exemplo, ainda que imprescindíveis para o trabalho, são secundários quando comparados com a importância das próprias plataformas digitais. Para os tribunais que se ativeram a essa questão, isso foi fundamental para indicar que, a despeito de tais instrumentos secundários serem de propriedade dos trabalhadores, eles não podem ser tomados como um indicativo de um trabalho autônomo.
Por outro lado, o reconhecimento da plataforma como meio principal de produção importa também por indicar a necessidade de uma análise detalhada do modo como muitas plataformas fazem a gestão algorítmica de sua força de trabalho.
Diversos tribunais indicaram que a liberdade de ligar ou desligar um aplicativo ou de aceitar ou rejeitar ordens enviadas por meio digital não são elementos suficientes para designar um trabalhador como autônomo. Mais ainda, entenderam que certas plataformas implementam sanções para restringir a possibilidade de trabalhadores rejeitarem os serviços transmitidos pelos aplicativos ou utilizam bonificações, formas de ranqueamento, promoções, etc. para fazer com que eles permaneçam logados o máximo de tempo possível aos sistemas das empresas.
Mesmo à distância e sem a presença de um humano, capturando e processando uma grande quantidade de dados de trabalhadores e clientes, a gestão algorítmica das plataformas é capaz de efetivamente dirigir e controlar os diversos aspectos da prestação de um serviço: gerenciar a atribuição de clientes a um trabalhador; determinar as regras, as formas e os prazos que considera adequados para execução de um serviço; calcular os preços a serem cobrados de clientes e a remuneração a ser paga a trabalhadores; monitorar em tempo real a execução de uma atividade; avaliar o trabalho desempenhado e calcular a produtividade de um trabalhador; implementar sanções, incluindo o desligamento de trabalhadores da própria plataforma.
Dessa maneira, muitas empresas têm à sua disposição trabalhadores que permanecem longas horas conectados em seus sistemas e submetidos à gestão algorítmica. Isso fez com que certos tribunais apontassem esses trabalhadores como efetivamente integrados à organização dessas empresas.
Executando a atividade principal pela qual a plataforma é conhecida – a entrega de alimentos, por exemplo – e, em alguns casos, utilizando instrumentos com identificações da empresa, ou mesmo uniformes, os trabalhadores são reconhecidos não como donos de seus próprios negócios, mas são confundidos com a própria marca das plataformas digitais, o que alguns tribunais também consideraram como um indicativo de integração à organização da empresa.
O ponto fundamental dessa integração, no entanto, remete uma vez mais para a gestão algorítmica e para o papel central que muitas plataformas desempenham no modelo de negócios dessas empresas. Como certos tribunais reconheceram, não há uma atuação genuinamente empresarial, ou independente, por parte dos trabalhadores, uma vez que eles dependem de um sistema de algoritmos não transparente, que restringe suas possibilidades de, independentemente, otimizar sua atividade e seus ganhos – e que é, ademais, concebido e modificado unilateralmente pela empresa.
Nesses casos, estabelece-se uma relação que pode agravar ainda mais a posição do trabalhador, dado que ele assume responsabilidades como, por exemplo, os custos com os instrumentos e materiais de trabalho e com a oscilação da demanda pelos serviços oferecidos, sem poder decidir, ou tendo sua independência seriamente limitada, sobre questões como os valores de seus serviços, o modo de execução, a possibilidade de formação de uma carteira de clientes própria etc.
Considerando esses diversos aspectos que, obviamente, devem ser analisados caso a caso, há uma tendência entre tribunais europeus, em particular em decisões de última instância, de rechaçar a classificação que certas plataformas fazem de seus trabalhadores como autônomos. A preocupação aqui, por certo, é a proteção dos direitos desses trabalhadores, reconhecendo, em alguns casos, a necessidade de que a jurisprudência atualize e refine suas análises de maneira a impedir o incremento da precariedade do trabalho.
Por outro lado, recentemente, a União Europeia aprovou uma diretiva que regulamenta o trabalho em plataformas, que será implementada pelos 27 Estados-membro da região, e que busca tanto fortalecer as autoridades públicas na verificação do vínculo empregatício nos trabalhos em plataforma, quanto regulamentar substantivamente a gestão algorítmica restringindo sua atuação, fiscalizando-a e buscando torná-la mais transparente.
FONTES
Christina Hiessl – Case Law on the Classification of Platform Workers