Plataformas e a Natureza do Vínculo com os(as) Trabalhadores(as)
A classificação incorreta dos(as) trabalhadores(as) por plataformas digitais tanto impede o acesso deles(as) a direitos de verdade, quanto inviabiliza uma atividade genuinamente autônoma.
Trabalho Subordinado
A distinção entre as atividades empresariais e as dos(as) trabalhadores(as) depende da análise concreta das relações estabelecidas entre as partes. Ela é importante, porque a confusão entre esses dois papéis diferentes pode prejudicar os(as) empregados(as).
Quando uma empresa organiza, dirige e controla os diversos aspectos da atividade/serviço realizado pelos(as) trabalhadores(as), ela é empregadora e os(as) trabalhadores(as) são empregados(as). Mesmo quando nessa relação faz-se uso de tecnologias digitais, como a gestão algorítmica, o elemento da subordinação permanece.
O(a) trabalhador(a) é subordinado(a) sempre que estiver submetido(a) ao controle e à direção de uma empresa, sempre quando precisar seguir instruções as quais, caso não sejam observadas, poderão ocasionar punições e, ainda, quando tiver seu serviço avaliado e o valor de seu trabalho determinado por outro (no caso, o empregador).
No trabalhado subordinado, não há liberdade para que os(as) trabalhadores(as) organizem de maneira autônoma sua própria atividade, determinem o preço do serviço, formem clientela própria. Há, em verdade, sujeição e dependência dos(as) trabalhadores(as) que não têm qualquer participação na dinâmica da atividade
empresarial. Há desigualdade no poder de negociação de empresas e empregados(as). O empregado não explora atividade econômica alguma, mas está inserido na organização produtiva de outrem.
Os empregados possuem direitos do trabalho assegurados pela lei como remuneração mínima, descanso semanal remunerado, férias, jornada de 8 horas diárias ou 44 semanais, pagamento de horas extras, aviso prévio, FGTS, 13º salário, seguro-desemprego, proteção contra dispensa sem justa causa, auxílio-doença, licença maternidade e paternidade, aposentadoria dentre outros.
Trabalho Autônomo e Empreendedor
O trabalho autônomo somente existe quando é exercido com total liberdade e autonomia. O(a) autônomo(a) não cumpre regras estabelecidas por outra pessoa, aplicativo ou empresa. Ele(a) determina o valor do serviço que realiza com total liberdade e tem o poder de escolher livremente seus clientes, além de não se submeter a qualquer controle e ordem.
A marca do trabalho autônomo é a completa e absoluta liberdade para organizar sua própria atividade, sem controle ou punição:
- liberdade de atuação: tem a liberdade de escolher quando e como realizar suas atividades profissionais;
- liberdade de preços: estabelece os preços e as condições de pagamento por suas atividades profissionais;
- liberdade de escolher clientes: escolhe os clientes para os quais deseja trabalhar, podendo recusar sem ser punido(a); e
- Liberdade de horários: não confundir liberdade com flexibilidade de horário de trabalho (este presente no trabalho subordinado).
A palavra que define autônomo é liberdade para organizar e gerir o seu trabalho, sem ter que respeitar ordens ou regras que não sejam por ele(a) determinadas.
Por sua vez, tornar-se empreendedor(a) é ser “dono(a) de um negócio”. A atividade de empreendedor(a) está muito relacionada com a questão de investimento de
capital, na qual há determinado objetivo de se criar algo dentro de um setor ou produzir algo.
É importante saber que o(a) autônomo(a) e o(a) empreendedor(a) não têm direitos do trabalho como descanso remunerado, férias, aviso prévio, jornadas não exaustivas, remuneração mínima, 13º salário, afastamentos em caso de doença ou acidentes, aposentadoria.
A Lei Brasileira Sobre a Subordinação no Trabalho
A legislação protetora do trabalho no Brasil (CLT) diz que empregador é a empresa, pessoa física ou jurídica, que admite uma pessoa, estabelece o valor a ser pago pela atividade ou serviço realizado por ela e, ainda, determina como a atividade/serviço deve ser prestado e as regras que devem ser obedecidas.
A lei estabelece que não há diferença entre o trabalho feito dentro de um estabelecimento, na casa do(a) trabalhador(a) ou na rua, desde que estejam presentes as características de uma relação de emprego.
Com o objetivo de adequar-se à realidade atual, a legislação brasileira também estipulou, desde 2011, a subordinação algorítmica, informatizada ou telemática, de modo que não há diferença se a ordem, as regras e o controle do trabalho forem dados por uma pessoa presencialmente ou por um aplicativo ou sistema gerido e controlado por uma empresa ou grupo de empresas. Assim, a lei prevê que os poderes do empregador podem ser realizados por meio de instrumentos eletrônicos, informatizados e telemáticos.
Para a legislação brasileira, existe trabalho subordinado quando, na prática, quem exerce o controle sobre a organização e a gestão do trabalho é o empregador, que estabelece também os valores a serem recebidos pela atividade/serviço executado, determina prazos para a sua realização, recebe os lucros e tem o poder para punir quem descumpre as regras impostas ou não executa a atividade estabelecida. A subordinação é o elemento característico da relação de emprego.
Quando o controle, a gestão, a organização, a supervisão do trabalho realizado e o lucro não pertencem ao(a) trabalhador(a), ele(a) é um subordinado e como tal é empregado(a) e tem direitos do trabalho como descanso remunerado, férias, aviso prévio, jornadas não exaustivas, remuneração mínima, 13º salário, afastamentos em caso de doença ou acidentes, aposentadoria.
“[A plataforma de entregas] não fornece apenas um serviço de intermediação eletrônica que conecta consumidores (os clientes) e trabalhadores genuinamente autônomos, mas coordena e organiza o serviço produtivo [...] Recorre a entregadores que não possuem organização empresarial própria e autônoma e que prestam seus serviços como parte da organização do trabalho do empregador, sujeitos à gestão e organização da plataforma [...]”
Tribunal Supremo Espanhol – Decisão sobre Plataforma de Entrega
Critérios para Identificar se o Trabalho em Plataformas é Subordinado ou Autônomo
Diante das mudanças trazidas pelas novas tecnologias ao mundo do trabalho, alguns países da Europa criaram leis que estipulam critérios para identificar a correta classificação do trabalho realizado: subordinado ou autônomo. A partir desses critérios, é possível levantar algumas questões que servem de orientação para, diante de casos concretos, entender se um trabalho feito para empresas que usam plataformas digitais é ou não subordinado:
- É o(a) trabalhador(a) ou a plataforma digital que determina o preço do serviço?
- Quem determina quanto será o ganho do(a) trabalhador(a) e quanto será o lucro da plataforma?
- São as plataformas que estabelecem qual deve ser a conduta do(a) trabalhador(a) frente ao cliente como, por exemplo, como ele(a) deve se apresentar?
- As plataformas, por meios tecnológicos ou não, supervisionam a execução do trabalho?
- As plataformas avaliam os resultados do trabalho, inclusive criando mecanismos que são utilizados pelos clientes para tal avaliação (como notas e curtidas)?
- Por meio de punições, bloqueios, limitação no repasse de serviços, desativação de contas, ocultação de informação etc., as plataformas restringem a liberdade de organizar o próprio trabalho, restringindo, por exemplo, a possibilidade de o(a) trabalhador(a) escolher ou não os serviços a serem prestados?
- As plataformas determinam que não devem ser utilizados substitutos(as) ou subcontratados(as) para a execução dos serviços?
- As plataformas colocam restrições para a formação de uma carteira de clientes própria ou para que se trabalhe para terceiros?
Os Tribunais da Europa e a Natureza do Vínculo entre Plataformas e Trabalhadores(as)
A introdução da gestão algorítmica do trabalho por diversas empresas trouxe consigo uma série de desafios aos(às) trabalhadores(as) e às autoridades públicas em todo o mundo.
Em especial, a questão da classificação correta dos(as) trabalhadores(as) – sobretudo das plataformas digitais mais emblemáticas de transporte particular ou de
entrega de alimentos – demandou de tribunais de vários países análises e decisões diversas sobre a natureza do vínculo existente entre plataformas e trabalhadores(as).
Frente a tais desafios, uma primeira e fundamental questão colocada diz respeito ao modo como as plataformas digitais designam contratualmente as relações que estabelecem com seus(as) trabalhadores(as). Tribunais em todo o mundo, ainda que não desconsiderem totalmente o que está estipulado em contratos redigidos pelas plataformas (termos de uso) – predominantemente de modo unilateral –, concentram-se nas relações fáticas estabelecidas entre as partes para decidir sobre a classificação dos(as) trabalhadores(as).
De saída, isso implica o enfrentamento de um problema específico colocado por diversas plataformas digitais: a opacidade da gestão algorítmica, isto é, as resistências de muitas empresas em disponibilizar informações sobre o funcionamento interno de seus sistemas.
Sobre tal questão, um ponto chave, reconhecido por diversos tribunais, é a centralidade que as próprias plataformas digitais têm para o modelo de negócio de muitas dessas empresas, ou seja, a maneira como para muitas delas o principal meio de produção da atividade desenvolvida é a própria plataforma, que organiza os diversos aspectos da prestação de um serviço. Carros, motocicletas ou bicicletas, por exemplo, ainda que imprescindíveis para o trabalho, são secundários quando comparados à importância das próprias plataformas digitais. Para os tribunais que se ativeram a essa questão, isso foi fundamental para indicar que, a despeito de tais instrumentos secundários serem de propriedade dos(as) trabalhadores(as), eles não podem ser tomados como um indicativo de um trabalho autônomo.
Por outro lado, o reconhecimento da plataforma como meio principal de produção importa também por indicar a necessidade de uma análise detalhada do modo como muitas plataformas fazem a gestão algorítmica de sua força de trabalho.
Diversos tribunais indicaram que a liberdade de ligar ou desligar um aplicativo ou de aceitar ou rejeitar ordens enviadas por meio digital não são elementos suficientes para designar um(a) trabalhador(a) como autônomo(a). Mais ainda, muitos tribunais entenderam que certas plataformas implementam sanções para restringir a possibilidade de trabalhadores(as) rejeitarem os serviços transmitidos pelos aplicativos ou utilizam bonificações, formas de ranqueamento, promoções etc. para fazer com que eles(as) permaneçam logados(as) o máximo de tempo possível aos sistemas das empresas.
Mesmo à distância e sem a presença visível de um humano, capturando e processando uma grande quantidade de dados de trabalhadores(as) e clientes, a gestão algorítmica das plataformas é capaz de efetivamente dirigir e controlar os diversos aspectos da prestação de um serviço: gerenciar a atribuição de clientes a um(a) trabalhador(a); determinar as regras, as formas e os prazos que consideram adequados para execução de um serviço; calcular os preços a serem cobrados de clientes e a remuneração a ser paga a trabalhadores(as); monitorar em tempo real a execução de uma atividade; avaliar o trabalho desempenhado e calcular a produtividade de um(a) trabalhador(a); e implementar sanções, incluindo o desligamento de trabalhadores(as) da própria plataforma.
Dessa maneira, muitas empresas têm à sua disposição trabalhadores(as) que permanecem longas horas conectados em seus sistemas e submetidos à gestão algorítmica. Isso fez com que certos tribunais apontassem esses(as) trabalhadores(as) como efetivamente integrados(as) à organização dessas empresas.
Executando a atividade principal pela qual a plataforma é conhecida – a entrega de alimentos, por exemplo – e, em alguns casos, utilizando instrumentos com identificações da empresa, ou mesmo uniformes, os(as) trabalhadores(as) são reconhecidos(as) não como donos de seus próprios negócios, mas são confundidos(as) com a própria marca das plataformas digitais, o que alguns tribunais também consideraram como um indicativo de integração à organização da empresa.
O ponto fundamental dessa integração, no entanto, remete uma vez mais à gestão algorítmica e ao papel central que muitas plataformas desempenham no modelo de negócios dessas empresas. Como certos tribunais reconheceram, não há uma atuação genuinamente empresarial, ou independente, por parte dos(as) trabalhadores(as), uma vez que eles(as) dependem de um sistema de algoritmos não transparente, que restringe suas possibilidades de, independentemente, otimizar sua atividade e seus ganhos – e que é, ademais, concebido e modificado unilateralmente pela empresa.
Nesses casos, estabelece-se uma relação que pode agravar ainda mais a posição do(a) trabalhador(a), dado que ele assume responsabilidades como, por exemplo, os custos com os instrumentos e os materiais de trabalho e com a oscilação da demanda pelos serviços oferecidos, sem poder decidir, ou tendo sua independência seriamente limitada, sobre questões como os valores de seus serviços, o modo de execução, a possibilidade de formação de uma carteira de clientes própria etc.
Considerando esses diversos aspectos que, obviamente, devem ser analisados caso a caso, há uma tendência entre tribunais europeus, em particular em decisões de última instância, de rechaçar a classificação que certas plataformas fazem de seus(as) trabalhadores(as) como autônomos(as). A preocupação aqui, por certo, é a proteção dos direitos desses(as) trabalhadores(as), reconhecendo, em alguns casos, a necessidade de que a jurisprudência atualize e refine suas análises de maneira a impedir o incremento da precariedade do trabalho.
Por outro lado, recentemente, a União Europeia aprovou uma diretiva que regulamenta o trabalho em plataformas, que será implementada pelos 27 Estados-membros da região, e que busca tanto fortalecer as autoridades públicas na verificação do vínculo empregatício nos trabalhos em plataforma, quanto regulamentar substantivamente a gestão algorítmica, restringindo sua atuação, fiscalizando-a e buscando torná-la mais transparente.