A Gestão Algorítmica do Trabalho
A classificação correta dos(as) trabalhadores(as) em plataforma é fundamental para que eles(as) tenham seus direitos do trabalho respeitados e para que não assumam riscos e responsabilidades que são das empresas.
Organização do Trabalho,Controle e Autonomia
Em uma atividade econômica, é de fundamental importância compreender os papéis distintos que desempenham empresas e empregados(as).
Em termos gerais, as empresas são responsáveis pela concepção, organização, direção e pelo controle de uma atividade econômica. Elas têm autonomia para decidir sobre investimentos, assumem riscos financeiros e recebem os lucros.
Por outro lado, os(as) empregados(as) têm de seguir instruções, regras e ordens das empresas para que tal atividade seja concretizada. Estão submetidos à gestão, ao controle, à fiscalização da empresa, além de terem seu trabalho monitorado e avaliado e receberem salários pelas atividades que realizam.
Esses poderes de controle, fiscalização, gestão, punição que se concentram na esfera do empregador podem ser exercidos de forma presencial, à distância ou, ainda, por meios eletrônicos.
Gestão Algorítmica e Falsa Autonomia
Peça central do modelo de trabalho em plataformas digitais é a chamada gestão algorítmica do trabalho.
Nos últimos quinze anos, diferentes plataformas digitais implementaram uma gestão algorítmica do trabalho, capaz de dirigir, gerir, organizar, supervisionar, fiscalizar, punir e controlar uma série de atividades necessárias ao desenvolvimento de uma atividade empresarial como, por exemplo:
- Contratar trabalhadores(as);
- Realizar treinamentos;
- Dar instruções;
- Atribuir clientes a trabalhadores(as);
- Monitorar os(as) trabalhadores(as)
- Estipular o preço dos serviços oferecidos;
- Calcular a remuneração dos(as) trabalhadores(as);
- Mensurar a produtividade dos(as) trabalhador(as);
- Premiar e punir trabalhadores(as);
- Dispensar trabalhadores(as) entre outras atividades.
Através de sofisticados dispositivos eletrônicos e recursos computacionais, muitas plataformas digitais conseguem, em tempo real, capturar uma quantidade imensa de dados, processá-los, criar perfis digitais, e tomar decisões de forma automatizada a partir do interesse das empresas.
Desse modo, mesmo à distância e sem a presença visível de um humano, diversas plataformas digitais têm a capacidade de dirigir, controlar, fiscalizar e avaliar as diversas atividades dos(as) trabalhadores(as), inclusive aplicando punições quando as regras que as empresas estipularam não forem cumpridas.
Quando os(as) trabalhadores(as) desenvolvem suas atividades submetidos à gestão algorítmica de plataformas que controlam, organizam, supervisionam e fiscalizam seu trabalho, eles(as) não participam de quaisquer decisões ligadas à atividade
empresarial e não ficam com os lucros do negócio, ou seja, atuam como verdadeiros(as) empregados(as) e não como autônomos(as).
No entanto, sob uma “falsa autonomia”, os(as) empregados(as) não somente não têm seus direitos do trabalho e previdenciários respeitados, como também são submetidos(as) a um sistema que muitas vezes os(as) obriga a assumir os riscos e os custos de uma atividade empresarial, sem ter uma independência real e sem receber os lucros.
Isso porque, dessa forma, eles(as):
- Não têm seus direitos respeitados enquanto trabalhadores(as);
- Não exercem uma atividade empresarial genuína; e
- Assumem, em muitos casos, custos e riscos financeiros das empresas que criaram as plataformas, sem participar de seus ganhos e decidir sobre seus investimentos.
97%
dos(as) motoristas de transporte particular de passageiros por plataformas afirmam que o valor a ser recebido pelo trabalho desenvolvido é determinado pela plataforma.
80%
dos(as) entregadores(as) por plataformas afirmam que o prazo para a realização das tarefas ou atividades laborais são determinadas pela plataforma.
85%
dos(as) entregadores(as) por plataformas afirmam que é a empresa quem determina os clientes a serem atendidos.
IBGE – PNAD Contínua Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais – 2022
Os Desafios da Gestão Algorítmica do Trabalho
A gestão algorítmica no contexto das relações de trabalho colocou desafios que envolvem trabalhadores(as), tribunais e governos.
O primeiro diz respeito ao modo como muitas plataformas digitais classificam sua força de trabalho como autônoma ou mesmo como cliente das plataformas.
Tribunais de diferentes países, no entanto, destacaram aspectos da gestão algorítmica e do modelo de negócio de várias plataformas para negarem essa classificação da força de trabalho como autônoma. Tribunais da Europa indicaram, por exemplo, que muitas plataformas integram os(as) trabalhadores(as) à sua organização; e/ou dirigem e controlam as suas atividades; e/ou restringem a autonomia de seus trabalhadores(as) etc., mas não os(as) enquadram como empregados(as) e sim como autônomos(as).
Ao mesmo tempo, alguns governos buscaram fortalecer o combate à falsa autonomia no trabalho por plataformas digitais, criando leis específicas direcionadas à regulamentação das relações de trabalho em plataformas digitais.
O segundo desafio colocado pela disseminação da gestão algorítmica diz respeito a sua falta de transparência.
Os sistemas criados por diversas plataformas mobilizam uma série de dados sobre os(as) trabalhadores(as), criam perfis sobre eles(as) e implementam decisões automatizadas.
Contudo, de forma predominante, não são claros os motivos e a forma como isso é feito. Nem sempre há informações completas, por exemplo, sobre os tipos de dados capturados, em que momento o são, para quais fins, onde e por quanto tempo são armazenados, quem tem acesso a eles, etc. Essas questões que permeiam o funcionamento das plataformas digitais podem influenciar os mais diversos aspectos do trabalho: da remuneração dos(as) trabalhadores(as) a um possível desligamento da plataforma.
A questão da transparência, por outro lado, também tem sido objeto de atenção de tribunais e governos.
Trabalhadores(as) e seus representantes vêm buscando, pela via jurídica, acesso às informações sobre como a gestão algorítmica efetivamente funciona e têm questionado decisões automatizadas implementadas pelas plataformas.
Por sua vez, há iniciativas legislativas que pretendem regulamentar substantivamente a gestão algorítmica do trabalho, restringindo sua atuação, tornando-a transparente e fiscalizando efetivamente sua atuação.
FONTES
Os Tribunais da Europa e a Gestão Algorítmica do Trabalho
A introdução da gestão algorítmica do trabalho por diversas empresas trouxe consigo uma série de desafios aos(às) trabalhadores(as) e às autoridades públicas em todo o mundo.
Em especial, a questão da classificação correta dos(as) trabalhadores(as) – sobretudo das plataformas digitais mais emblemáticas de transporte particular ou de entrega de alimentos – demandou de tribunais de vários países análises e decisões diversas sobre a gestão algorítmica do trabalho implementada por muitas plataformas.
Frente a tais desafios, uma primeira e fundamental questão colocada diz respeito ao modo como as plataformas digitais designam contratualmente as relações que estabelecem com seus(as) trabalhadores(as). Tribunais em todo o mundo, ainda que não desconsiderem totalmente o que está estipulado em contratos redigidos pelas plataformas (termos de uso) – predominantemente de modo unilateral –, concentram-se nas relações fáticas estabelecidas entre as partes para decidir sobre a classificação dos(as) trabalhadores(as).
De saída, isso implica o enfrentamento de um problema específico colocado por diversas plataformas digitais: a opacidade da gestão algorítmica, isto é, as resistências de muitas empresas em disponibilizar informações sobre o funcionamento interno de seus sistemas.
Sobre tal questão, um ponto chave, reconhecido por diversos tribunais, é a centralidade que as próprias plataformas digitais têm para o modelo de negócio de muitas dessas empresas, ou seja, a maneira como para muitas delas o principal meio de produção da atividade desenvolvida é a própria plataforma, que organiza os diversos aspectos da prestação de um serviço. Carros, motocicletas ou bicicletas, por exemplo, ainda que imprescindíveis para o trabalho, são secundários quando comparados à importância das próprias plataformas digitais. Para os tribunais que se ativeram a essa questão, isso foi fundamental para indicar que, a despeito de tais instrumentos secundários serem de propriedade dos(as) trabalhadores(as), eles não podem ser tomados como um indicativo de um trabalho autônomo.
Por outro lado, o reconhecimento da plataforma como meio principal de produção importa também por indicar a necessidade de uma análise detalhada do modo como muitas plataformas fazem a gestão algorítmica de sua força de trabalho.
Diversos tribunais indicaram que a liberdade de ligar ou desligar um aplicativo ou de aceitar ou rejeitar ordens enviadas por meio digital não são elementos suficientes para designar um(a) trabalhador(a) como autônomo(a). Mais ainda, entenderam que certas plataformas implementam sanções para restringir a possibilidade de trabalhadores(as) rejeitarem os serviços transmitidos pelos aplicativos ou utilizam bonificações, formas de ranqueamento, promoções etc. para fazer com que eles(as) permaneçam logados(as) o máximo de tempo possível aos sistemas das empresas.
Mesmo à distância e sem a presença visível de um humano, capturando e processando uma grande quantidade de dados de trabalhadores(as) e clientes, a gestão algorítmica das plataformas é capaz de efetivamente dirigir e controlar os diversos aspectos da prestação de um serviço: gerenciar a atribuição de clientes a um(a) trabalhador(a); determinar as regras, as formas e os prazos que consideram adequados para execução de um serviço; calcular os preços a serem cobrados de clientes e a remuneração a ser paga a trabalhadores(as); monitorar em tempo real a execução de uma atividade; avaliar o trabalho desempenhado e calcular a produtividade de um(a) trabalhador(a); implementar sanções, incluindo o desligamento de trabalhadores(as) da própria plataforma.
Dessa maneira, muitas empresas têm à sua disposição trabalhadores(as) que permanecem longas horas conectados em seus sistemas e submetidos à gestão algorítmica. Isso fez com que certos tribunais apontassem esses(as) trabalhadores(as) como efetivamente integrados(as) à organização dessas empresas.
Executando a atividade principal pela qual a plataforma é conhecida – a entrega de alimentos, por exemplo – e, em alguns casos, utilizando instrumentos com identificações da empresa, ou mesmo uniformes, os(as) trabalhadores(as) são reconhecidos(as) não como donos de seus próprios negócios, mas são confundidos(as) com a própria marca das plataformas digitais, o que alguns tribunais também consideraram como um indicativo de integração à organização da empresa.
O ponto fundamental dessa integração, no entanto, remete uma vez mais à gestão algorítmica e ao papel central que muitas plataformas desempenham no modelo de negócios dessas empresas. Como certos tribunais reconheceram, não há uma atuação genuinamente empresarial, ou independente, por parte dos(as) trabalhadores(as), uma vez que eles(as) dependem de um sistema de algoritmos não transparente, que restringe suas possibilidades de, independentemente, otimizar sua atividade e seus ganhos – e que é, ademais, concebido e modificado unilateralmente pela empresa.
Nesses casos, estabelece-se uma relação que pode agravar ainda mais a posição do(a) trabalhador(a), dado que ele assume responsabilidades como, por exemplo, os custos com os instrumentos e materiais de trabalho e com a oscilação da demanda pelos serviços oferecidos, sem poder decidir, ou tendo sua independência seriamente limitada, sobre questões como os valores de seus serviços, o modo de execução, a possibilidade de formação de uma carteira de clientes própria etc.
Considerando esses diversos aspectos que, obviamente, devem ser analisados caso a caso, há uma tendência entre tribunais europeus, em particular em decisões de última instância, de rechaçar a classificação que certas plataformas fazem de seus(as) trabalhadores(as) como autônomos(as). A preocupação aqui, por certo, é a proteção dos direitos desses(as) trabalhadores(as), reconhecendo, em alguns casos, a necessidade de que a jurisprudência atualize e refine suas análises de maneira a impedir o incremento da precariedade do trabalho.
Por outro lado, recentemente, a União Europeia aprovou uma diretiva que regulamenta o trabalho em plataformas, que será implementada pelos 27 Estados-membros da região, e que busca tanto fortalecer as autoridades públicas na verificação do vínculo empregatício nos trabalhos em plataforma, quanto regulamentar substantivamente a gestão algorítmica, restringindo sua atuação, fiscalizando-a e buscando torná-la mais transparente.